DANÇAS DA TRIBO URBANA: NEXT WAVE FESTIVAL

BLITZ 22 Dec 1992Portuguese

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1. Um lado (o verso)

De 14 de Outubro a 28 de Dezembro, Brooklin anima toda Nova Iorque com o seu Next Wave Festival, promovido pela prestigiosa Brooklin Academy of Music. É um dos mais importantes festivais de música e dança da cidade – o que o coloca entre os mais importantes a nível mundial, já se vê – com uma programação que privilegia as grandes produções. Este ano em que o Festival comemora o seu décimo aniversário, os nomes de De Keersmaeker, Philip Glass, Bob Wilson, Mark Morris, Robert Lepage, entre outros, mostram bem os parâmetros de qualidade por que se rege o evento.
Em Novembro, pude assistir no majestoso Majestic Theater (outras adjectivações possíveis para este formidável teatro: mítico ou apocalíptico), á estreia nova-iorquina Urban Scenes/Creole Dreams, do coreógrafo David Rousseve. Política, Perda, Revolta, estas as ideias chave do trabalho de Rousseve. Aqui, senão na América pelo menos nesta cidade, o enquadramento mental para se ver dança (ou qualquer outra forma de arte) passa por uma premissa que não estará necessariamente presenteou será necessariamente verdadeira na compreensão e descodificação da dança europeia: a de que o corpo é o primeiro instrumento político e que o género, a cor, a preferência sexual de cada um é algo que ultrapassa o foro íntimo e que se vive enquanto facto de inevitáveis consequências éticas, morais, guerrilheiras por vezes, e às quais não devemos (e não podemos) fugir. (Já agora, só assim é que Sex de Madonna se torna plenamente compreensível enquanto projecto estético). Assim, não é de ânimo leve que devemos tomar uma afirmação de Rousseve à revista Qanda: “Agora, considero-me um coreógrafo negro gay; antes eu era um coreógrafo afro-americano”. Sua obra fala então e inevitavelmente da morte que de repente começou a roubar os entes mais queridos a uma geração que até há pouco a experimentava como algo que acontecia enquanto norma a pessoas mais velhas. Mas espalha a metáfora de forma inteligente para outro tipo de morte, a das identidades culturais crioula e negra. É uma coreografia longa, duas horas e meia de teatro, dança onde Rousseve e a sua companhia Reality revisitam a memória negra, partindo da biografia do coreógrafo e onde a música, do “gospel” ao vivo em palco, passando pelo “funky” anos setenta, por Ray Charles, Public Enemy e terminado na colossal interpretação Amazing Grace por B.J.Crosby, como uma voz que pôs o Majestic de pé (e sendo o último momento da peça, deixando a impressão de um truque para puxar aplausos) cria uma profundidade dramática que por vezes os recursos coreográficos do autor não acompanham. Rousseve oscila entre um desbundativo gosto pelo movimento forte tipo MTV, coreografado de forma super bem conseguida (e que imagem dar pelas palavras?) – o seu melhor – e alguns momentos pretensamente mais sérios e mais “nobres” de gosto duvidoso, em que incompreensivelmente Rousseve vai buscar o piroso classicizante para mostrar que o espectáculo e o coreógrafo são “sério”: cai numa armadilha ao buscar no gosto branco pequeno-burguês a justificação da dignidade da sua mensagem/arte. Neste ponto Ice-T é bem mais eficaz.


2. P.S. 122 + Judson Church (o reverso)

O que é mesmo bom em Nova Iorque é saber que a arte não começa nem termina nos festivais. Por todo o lado, em lofts abandonados, em apartamentos particulares, na rua, nos parques, em vãos de escada, em salas nem sempre apropriadas para apresentações, e todos, todos os dias, há dança ou performance de carácter mais ou menos experimental, informal, desbundativo, radical, ou o que se lhe queira chamar. Dois locais de culto são o P.S. 122, onde o maralhal das “contact-jams” e do movimento puro se encontra todas as segundas-feiras para improvisar, e a Judson Church, no miolo do enorme complexo de New York University, o local onde tudo começou para a dança pós-moderna. No P.S. 122 assisti a uma performance espectacular de Yvonne Meier. Título elucidativo: The Shining. Apenas doze espectadores de cada vez, éramos alinhados em fila indiana e separados dos amigos. A entrada no espaço da performance era feita um a um ou dois a dois, consoante a vontade misteriosa de uma voz que gritava pelos nossos número de ordem na fila. Uma música de filme de terror marcava o ambiente. Mal entrava alguém para dentro da sala fazia-se um profundo silêncio, um intervalo incerto, e de repente gritos de susto. Às vezes, reconhecíamos como sendo a dos nossos amigos. Eu, claro, era o último da fila.
A experiência lá dentro oscilava entre o comboio fantasma e as masmorras de Bastilha nos seus piores dias. Um percurso feito na escuridão, pontilhado por aparições de braços, pernas, rostos iluminados rapidamente por lanternas. Ordens sussurradas ao ouvido: “por aqui”, “rápido”. Perde-se o sentido de orientação no meio de um labirinto cerrado e baixo feito de caixas de cartão. Por fim encontramo-nos todos numa clareira. Aqui, à luz incerta de lanternas e ao som infernal, de John Zorn, os bailarinos constroem uma coreografia de ódio, violência e intensa fisicalidade e onde o desespero não está longe. Por vezes com alguns momentos um pouco “paranóia-juvenil-da-alienação-louca”, que eram, diga-se, pirosos. O próprio conceito de fazer a dança habitar uma instalação plasticamente complexa e organicamente necessária à vida da peça é um sinal de que algo se passa de novo entre os novos criadores americanos normalmente muito radicais na defesa do primado do movimento puro. Medo foi algo partilhado por todos os membros do público mas o “vodka” grátis no fim de tudo dizia que a peça era afinal algo que se completava com a nossa presença.
Na Judson Church, a apresentação contava trabalhos de John Marinelli, e Allyson Green. Marinelli apresentou duas peças fortemente teatrais: uma basicamente desinteressante, outra de partir a rir, principalmente tendo em conta que a maioria da assistência era constituída ou por professores ou alunos do Movement Research, e onde se desmistificava o paleio que rodeia as aulas de movimento: “o contacto com o chão”; “partilhar o movimento”; “o zero interior”; etc.
O momento alto da noite foi sem dúvida a apresentação de duas peças de Allyson Green: um dueto com José Navas extraído da coreografia Between (Songs of Unrest) e um solo inédito dançado por Green. Em ambas as peças ressalta a subtileza e controlo dramático de cada movimento, cada gesto, cada olhar, que Green imprime ao corpo do seu parceiro, num jogo de encadeamentos e analogias gestuais que no dueto cria um constante estado de surpresa. Green sabe criar em ambas uma atmosfera que se equilibra inteligentemente entre uma languidez e um humor subtis e onde a música é sempre uma parceira discreta mas certeira (Fred Klatz no dueto; Kodo, no solo). Duas peças surpreendentes e uma coreógrafa que constrói com o seu movimento uma poética do silêncio.