ACARTE 92: UM E OS OUTROS

BLITZ 22 Sep 1992Portuguese

item doc

Na semana de estreia de João Fiadeiro é a ele que dedico maior atenção.

1. O que eu penso que ele pensa que eu penso, pela companhia Re.Al

Nesta triste dinâmica que se vive hoje em dia entre crítica e criação, é muitas vezes o ambiente de guerrilha que marca os discursos de um e outro lado. Não gosto disso e tento não o fazer quando escrevo sobre a dança. O último trabalho que critiquei de João Fiadeiro foi o seu dueto para Klapstuk. Aí pude dizer que não me identificava com as proposições estéticas que o autor então quis trabalhar. Hoje, espero que se perceba, não é gosto que está em causa, nem o meu, nem o de Fiadeiro. É principalmente a mestria, que faltou, para meu grande pesar, neste seu trabalho. Eis o que eu penso que penso que penso.
João Fiadeiro apresentou em estreia absoluta a sua última produção, que inaugurava nos Encontros Acarte a presença da geração de novos coreógrafos a que se convencionou chamar da Nova Dança Portuguesa. Foi um espectáculo surpreendente mas infelizmente não no bom sentido. Tendo acompanhado de perto o percurso de João Fiadeiro na coreografia, e chegado mesmo a colaborar de perto na feitura de duas das suas mais recentes obras, o que mais me espantou neste trabalho foi a incapacidade revelada pelo coreógrafo em resolver problemas básicos na estruturação de um espectáculo, coisa que Fiadeiro há muito já demonstrara dominar bem. Falo da noção de timing, da interligação entre elementos coreográficos, da relação entre banda sonora e movimento, da explanação de um conceito, da utilização plausível de elementos cénicos, da pertinência das acções e emoções expostas pelos bailarinos dentro das premissas estéticas (formais, conceptuais) a que o coreógrafo se propunha em cada obra.
Pude ver o espectáculo nos dois dias da sua apresentação. E dos dois guardo a mesma impressão de ter assistido a um pobre esboço de ideia. A coreografia inicia-se com o traço de autor das obras de Fiadeiro, presente desde o seu quarteto apresentado no Estúdio Coreográfico do Ballet Gulbenkian em 1989 até ao seu dueto apresentado no Klapstuk’91 – uma introdução em jeito de epígrafe que conduz o espectador para a temática que se propõe abordar. Mas, aqui, Fiadeiro optou por não demarcar esse momento introdutório, que se desenrola enquanto o público vai ocupando os seus lugares, do resto da coreografia, deixando-o antes gradualmente se dissolver, esbater-se até a um início, que se adivinha exclusivamente pelo apagar das luzes sobre o público: prolonga-se, para além dos limites suportáveis, um mesmo ambiente sonoro, gestual e conceptual tendo como jogo exploratório a descoberta do outro pelos bailarinos. Esta abordagem (a da exploração fascinada) parece ser a única ideia a que Fiadeiro se agarrou para basear a intenção dramática das acções ao longo da peça, francamente limitada e cansativa: em termos formais resultava em olhares trocados entre diferentes pares e consequentes exercícios de “contact” entre os bailarinos – onde a disposição espacial dos corpos não era a mais feliz – e em corridas sem muito sentido à volta do palco.
Minto. Há duas ideias na coreografia – ideias mesmo, com força: as mulheres cegas, gemendo baixinho, sendo manipuladas pelos seus pares, à beira do abismo do palco, momento que se perde e a que só a música irá uma ou outra vez remeter. Outra, marcada pela música ritmada, e onde Fiadeiro mostra as suas capacidades de construir movimento com interesse e força.
A coreografia encontrou-se assim entalada entre um cenário forte de Marta Wengorovius, onde o chão dourado e os objectos espalhados esparsamente propunham uma paisagem onírica, e a imponente e excelente música original de João Lucas, que remetia igualmente, no uso das vozes e dos samplers, para um onirismo que os figurinos de Abbondanza aproximavam a um certo universo infantil. Os bailarinos, com a maquilhagem pesada, e confrontando-nos com o olhar, numa quase revisitação expressionista, completavam o quadro, que ao espectador se impunha com insistência.
Entre as imagens (visuais e sonoras) e a dança, é difícil encontrar uma relação. Um maior trabalho de direcção é desejável de modo a que as diversas partes, somadas, constituam um todo. E para que se impeça a descoordenação chocante entre bailarinos (ainda por cima para quem tinha vindo do espectáculo de Anne de Mey) que se viu no segundo espectáculo em alguns uníssonos.

2. Sonatas 555; Terramara; Timbila ta Venas; Kathakali

Anne de Mey, membro fundador da Companhia Rosas de Anne Teresa de Keersmaeker, trouxe a Lisboa Sonatas 555, um espectáculo em que as premissas da dança como fruição do prazer de ver corpos em movimento – e onde a ideia de “graça” não está longe – é a chave da criação. Com um trabalho de movimento muito rigoroso e a colaboração de excelentes bailarinos, De Mey conseguiu dar um tom carnal que não deixa de ser inesperado à música de Scarlatti. Nove bailarinos – ao contrário dos dez anunciados – e um carneiro – para dar o toque provocatório (e gratuito) q.b. (outras leituras ultrapassariam as proposições que o espectáculo exibe) – proporcionaram ao público, em matinée de sábado familiar, um exercício coreográfico certinho, divertido, síntese em escala menor dos dois grandes da coreografia belga contemporânea: Vandekeybus e de Keersmaeker.
Michele Abbondanza estreou o seu dueto Terramara, com Antonella Bertoni. Num ambiente cenográfico superlativo, o espectáculo oscilava entre as premissas da performance art – a que o ambiente de instalação do palco dava força – e as propostas pós-modernas de Carolyn Carlsson. Com um humor subtil e raro de encontrar hoje em dia, e a presença de dois bons bailarinos – Bertonni é excelente – os retalhos de jogos corporais ou cenográficos sucedem-se para completar um todo desigual e por vezes um tanto maçador. As laranjas espalhadas pelo palco ao longo da peça, alguns movimentos e a utilização de cestos de vime remetem para um simbolismo que a psicanálise acharia curioso mas que não será tanto em termos de fruição do espectáculo.
E chegamos aos dois eventos mais “etnográficos” dos Encontros. Os bailarinos e músicos Chopi de Moçambique que ocuparam o Anfiteatro ao ar livre com as suas danças e ritmos, e o teatro indiano Kathakali. Ambos os espectáculos nos sugerem múltiplas interrogações que caem antes no campo da antropologia: o que é o genuíno na contemporaneidade, o que é tradição quando os dançarinos Chopi trazem t-shirts que dizem Texas e gravatas penduradas à cintura como enfeites ou quando os actores hindus representam numa das formas tradicionais do teatro indiano, uma peça chamada King Lear, de um tal de William Shakespeare? E finalmente, onde reside e como se pode situar o nosso olhar de espectador perante estas manifestações, genuinamente espectaculares?
Uma série de questões que estes Encontros, na sua nova forma, não responderam, pois que a programação não foi mais do que uma manta de retalhos imposta ao público (cada vez menos e, cada vez menos entusiasta do que nos anos anteriores, o que leva a pensar que o público destes Encontros é, neste momento, outro), sem quaisquer explicações programáticas (não há uma linha no programa que fale da orientação do Festival e dos critérios de selecção). Parece que os Encontros começam a sobreviver apenas de um passado que foi inovador e, mesmo quando apresentando obras menos felizes, com a marca da coerência. Institucionalizando-se na segurança das companhias de estatuto: nem sempre estatuto é igual a qualidade), os Encontros já não são o que foram. E a ausência de profissionais por entre o público, na grande parte dos espectáculos, mostra bem isto.