ACARTE 92: MAGIAS E PALCOS NUS

BLITZ 15 Sep 1992Portuguese

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O prólogo ligeiro que foi o espectáculo de rua não chegou para aquecer e marcar um início para os Encontros. A verdadeira abertura aconteceu com May B de Maguy Marin.

1. May B, de Compagnie Maguy Marin

A coreografia – um clássico da nova dança, estreado à onze anos – desenvolve-se num percurso de revisitação dos grandes pólos temáticos ou formais da obra de Beckett, numa lógica de habitação gradual de espaços e de personagens. Começando num palco cruamente despido e com os bailarinos vestidos simples e uniformemente de branco (apenas as máscaras e as posturas os distinguem enquanto indivíduos), Maguy Marin constrói ambientes e movimentos que sugerem sonoridades e ritos primordiais, como num processo de descoberta e evolução do ser humano enquanto ser artístico. Como pretexto formal, os ambientes das peças mais abstractizantes e cruéis de Beckett como All That Fall e Act Without Words I and II imperam, até ao momento em que os bailarinos largam o pó e o branco para se travestirem nos personagens que mais identificamos com Beckett: vagabundos, velhos, estropiados absurdos, tragicómicos.
Impressiona ver a excelência dos bailarinos quer no movimento quer no controlo de voz, e se por vezes a relação entre música e movimento é bastante linear e entediante como no ballet, e o humor resvala para o burlesco da commedia dell’arte que pouco tem a ver com o universo do autor referenciado – e com o meu gosto pessoal para estas coisas – o que cansa o espectador, por outro lado, é reconfortante ver a mestria de saber construir uma obra onde o que ressalta verdadeiramente é o enorme génio de Samuel Beckett.


2. Ballet n.º 5... to dance by the nose, por Neuer Tanz

O espectáculo da coreógrafa Wanda Golonka começava ainda o público se amontoava nas escadarias do Teatro Nacional: lá dentro da sala, um barulho ensurdecedor (fazendo lembrar um pouco o início de Retrato da memória enquanto peso morto, de João Fiadeiro). O público entra e os bailarinos saltam da plateia para o palco e de imediato começam a executar uma série de movimentos vigorosos e repetitivos, em silêncio, à boca de cena. Está-se nos antípodas do ballet clássico: aqui os corpos são vivos – ouvimos o seu arfar, vemos o suor colar-se-lhes nas roupas, sentimos o cheiro da sua transpiração, observa-se cada traço de esforço, desenham-se os contornos da sua nudez. O palco totalmente nu reforça a metáfora da exposição.
Nova parte: instala-se a caixa negra por elevação de linóleos às três paredes o que cria uma atmosfera muito específica, pesada e quente, como em algumas instalações de Beuys. Neste ambiente, um dueto para homem e mulher e duas barras de metal, desenrola-se em exercício preciso nas premissas da dança abstracta – muito bem dançado, uma revisitação inteligente.
Toda a lógica estrutural é assim a da sucessão de pequenas peças isoladas por black out, com funcionamento autónomo e em que alguns elementos transitam pontualmente de modo a criar uma coesão linear à coreografia. Devo dizer que quanto a mim tudo parecia excelente e bem feito até cerca de metade da peça quando a autora descaiu para alguns truques “nova dança” (fingir que estão num ensaio; alguma fala sem sentido; elementos teatrais infelizes) desnecessários e irritantes, o que criou um contexto negativo para a apreciação do todo e prolongou a peça para lá dos seus limites temporais adequados – por vezes é pressão dos produtores; se assim foi, fiquei com curiosidade de conhecer mais desta companhia de Düsseldorf.


3. Les Échelles d’Orphée, pelo Théatre JEL

Théatre JEL é o nome da companhia de Josef Nadj, e Les Échelles d’Orphée, o espectáculo esperado dos Encontros deste ano. Nadj revisitou a sua cidade natal e fê-lo utilizando o arquétipo por excelência da memória na contemporaneidade: o filme e a fotografia (acabada a memória falada e condenada a escrita, fica o gesto preso na verdade da objectiva). O ambiente de comédia muda dos anos vinte, e onde não deixa de estar presente a banda de música ao vivo para sublinhar as diversas cenas (e digo bem, sublinhar, não ilustrar, esclarecer ou completar), e a própria sugestão da primeira imagem do espectáculo em sombra chinesa num ecrã branco, remetem-nos para esta sugestão do cinema como depositário da memória.
O espectáculo desenvolve-se desarmónica e um pouco confusamente, principalmente no início. Com excelentes performers, um coreógrafo/director cheio de ideias e grande à-vontade na manipulação dos truques teatrais que se aproximam do fascínio da magia (e circo e vaudeville são outras referências da peça), o espectáculo parece no entanto conter-se numa pouco clara definição de cenas e personagens. Incomodativa é a presença da música pouco inspirada de Tickmayer, que muitas vezes “achatava” eventuais polissemias na acção, reduzindo o discurso a uma unidimensionalidade pouco interessante. (Ao que parece, o processo de composição fez-se um pouco à margem do processo coreográfico). Finalmente, há que indagar se estes problemas fazem do espectáculo um mau espectáculo. A resposta é um claro não. Fazem antes pensar quão difícil e delicada é a construção de um objecto coreográfico/teatral: Nadj tem do seu lado uma intuição quase física do que é encenar, do que é fazer arte em palco, bem como um enorme à vontade, quase lúdico, com as possibilidades expressivas dos corpos (ao que tudo indica, para Nadj, ilimitadas). A estas escadas de Orfeu, faltou quanto a mim um certo tempo e um certo respirar, para atingir a perfeição de Canard Pékinois.


4. Tejalem, de Pierre Deloche

Pega-se numa das mais belas e nobres formas de canto masculino, o cantar alentejano, e faz-se uma coreografia sobre os signos do zodíaco (!), dançada por três bailarinas inconcebíveis, colorindo-se tudo com sons sampleados, luzes a rodos e tempo excessivo, que é para ser contemporâneo. Excelente ocasião para se ver: 1. o que o treino clássico implica em termos de estruturação psicológica dos bailarinos, nomeadamente na vivência do corpo enquanto imagem (veja-se como elas se aproximam deles); e 2. a que nível de crueldade a colagem de tradições pode atingir quando lida desastradamente com pessoas de carne e osso (veja-se a dignidade e força daqueles homens a resistir heróica e honradamente aos horrores sonoros, visuais e cinéticos que o coreógrafo constrói à volta deles). O que eu vi cheirava a morte: morte de um mundo ainda coeso face a superficialidade espectral, vazia e ascéptica da fragmentação fin-de-siécle. O coreógrafo não se apercebeu disso. E a produção especialmente encomendada não foi mais do que um acto de crime cultural.


5. Y quedaré/ Delante De Los Muros Inmensos/ Esperando Que por Fin Venga/ Alguiem a Buscarme... A Kaspar, pelo Danat Danza

A produção tem tudo para ser perfeita: cenografia cuidada, belos figurinos de António Belart, um óptimo desenho de luzes por Evaristo Valera. Os bailarinos têm boa técnica. A música original de Juanjo Ezquera também não é má. Tema? Kaspar Hauser, uma espécie de menino-lobo versão baviera oitocentista. Mas eis como tudo não serve para nada se não há o essencial por trás: uma ideia de espectáculo. É uma coreografia inócua, com plágios directos de obras de Karine Saporta, a nível de cenografia, e de inspiração Teresa de Keersmaeker a nível das voltinhas que as bailarinas dão pelo ar fora. Espectáculo que vive lá ao fundo, na bidimensionalidade da imagem, nos corpos animados mas sem vida, com os clichés da modernidade quanto baste (falar, ler, sorrir, não fazer sentido) em relação aos quais o peso de quase um século de performance art exigiria um tratamento mais inteligente e reflectido. Há cor, luz, melodia, uma senhora gorda, um cenário que se abre e se fecha e roda, e mulheres e homens bonitos. Pangloss havia de adorar. O público lançou bravos. Se calhar estou eu errado.