SPRINGDANCE II – VOORLAND

BLITZ 9 Jun 1992Portuguese

item doc

Aqui se relata o programa Voorland do Springdance Festival, em Utrecht. Se há algo que salta à vista nesta edição do Voorland – a programação dentro do Springdance dedicada aos novos nomes da coreografia contemporânea – é a melhor qualidade das obras em relação à edição do ano passado, quando as coreografias mais interessantes apresentadas foram as de Vera Mantero e de Joana Providência (sem qualquer espírito bairrista, creiam-me) por meio de um mar de indigência artística. Para ser franco, digo isto assim de chofre. É uma impressão intuitiva, que me surge evidente ao percorrer o programa do festival enquanto tento ver como organizar esta crítica. Mas, mesmo sem ver, ao ler no programa os nomes de Marguerita Guéra – a catalã residente em Nova lorque que abriu o Voorland com fragmentos de uma peça ainda não acabada de Gonnie Heggen – a mais sincera coreógrafa holandesa que tive oportunidade de ver até hoje – de Matjaz Prograjc – o esloveno que apresentou um espectáculo e uma companhia despidos de qualquer de pretensão e cheio de arte – de Meg Stuart – com Disfigure Study, obra que o Acarte em Lisboa e o Teatro Gil Vicente, em Coimbra, apresentaram há alguns meses – e que então critiquei – ao ler estes nomes, fico com a sensação de que talvez o Springdance deste ano tenha tido o seu ponto alto no Voorland.
Da programação ficaram ainda por mencionar três nomes: Daniele Desnoyers, do Canadá, Ursula Schmid, da Suíça, e Cecile van Deursen, de Amesterdão, que apresentaram as peças mais fracas. Se as duas primeiras são trabalhos (e o termo é intencional) bem acabados e inócuos (Ursula Schmid terá apesar de tudo a vantagem de uma linguagem própria e de uma ideia de coreografia, que explora ao limite), Cecile van Deursen terá sido a única a apresentar uma obra francamente má (no ano passado eram às catadupas) fútil na exploração dos clichés formais e temáticos da coreografia contemporânea: mulheres, cadeiras, filme e sapatos em interacções que o título Monologue Interiéur esclarece (tipo, “histeria sensual da mulher objecto na intimidade que se vê dividida entre o prazer narcísico e a revolta obsessiva”). Inútil no eventual desmascarar da condição de “mulher-objecto-etc”, porque o que deveria ser irónico e distanciado no discurso coreográfico insiste em parecer profundamente sentido, não descolando portanto de uma verdadeira ridicularização do feminino: um feitiço virado contra a feiticeira. Tecnicamente, a intérprete – Marja Braaksma – não era muito má: o pior era quando o movimento bastante básico (má dança-jazz recalcada), não bastava para as intenções da coreógrafa e esta introduzia momentos “teatrais”. A música (T. Bressers, H. Janssens, H. Nijssen) era de fugir, o cenário demasiado “design” para o meu gosto. Uma tristeza.
Marguerita Guergué apresentou fragmentos da sua peça em construção Constanza na difícil sala Rasa (palco excessivamente estreito). Ela surge só, de fato escuro num palco despojado. Numa primeira parte dança num silêncio pontuado pelo som da respiração, dos pés que se arrastam, de ruídos vagos feitos com a boca.
Depois de a ter visto no ano passado na Bélgica, com uma outra coreografia, penso que o tipo de movimento de Guergué é uma espécie de actualização de algumas danças rituais, algures entre o sabbath das bruxas medievais e algumas danças ameríndias: o corpo curvado para o solo, o círculo como percurso. Em Constanza aquela mulher naquele palco nu expõe-se mais e mais e impõe-se mais e mais. Ela gira sobre si mesma, traça círculos, ocupa gradualmente e cada vez mais o espaço do palco, sai de si mesma em intensidade de movimento e em som, até que os seus passos coreografam uma música, momento que antecede a entrada em cena da segunda intérprete, Veronica de Souza, cuja personagem será tudo o que a de Guergué não é. Cria-se uma teatralidade que encontro também na coreógrafa espanhola Mónica Valenciano: entre o amor e o humor, tudo é bem feito.
A presença de Veronica, a princípio desligada de Guergué, transforma-se em co-presença, o contacto físico surge de forma quanto a mim muito inteligente: aproveitando a falta de bambolinas no teatro, as duas intérpretes encontram-se na suposta terra de ninguém que envolve o palco, falam-se – o lugar assim o permite – e reentram em cena com a música original de Hahn Rowe. Desconstrução paradoxal da moldura do palco.
A música propõe novas leituras: Hahn Rowe será talvez um dos mais impressionantes compositores para dança que já tive oportunidade de ouvir e a composição para esta peça baseia-se em memórias de sons, uma música evocativa e incrivelmente amarga, forte, emotiva. Nada de bonitezas. E desta vez descrevo mais do que escrevo porque só a peça final, acabada, pode permitir possíveis interpretações.
Gonnie Heggen e Matjaz Prograjc sugerem-me, por seu lado, uma série de qualificativos comuns: simplicidade, objectividade, humor, muito sentimento, muito boa interpretação, nenhuma pretensão, nenhuma tolice. A primeira, apresentou um solo onde o sapateado se mistura com teatro e com dança (o que diabos é a dança-dança? não sei bem), num cenário que é em si mesmo um statement da sua proposta: bandeirinhas de papel daquelas dos arraiais. A sua peça – Here’s to Harry – é uma homenagem ao tap dancer Harry Whittaker Sheppard, recentemente falecido, e desenvolve-se numa linha narrativa (mas não propriamente numa história, o que está muito bem feito) onde a música e a mímica se ilustram uma à outra e onde Heggen constrói o ambiente da festa – e da tristeza – numa interpretação sempre auto-irónica. O facto de ser a peça complementar ao programa que se iniciava com o Monologue Interiéur de Cecile van Deursen acabou por ser pedagógica: mostra que a arte não precisa de luxo – precisa de sentimento.
Sentimento às catadupas era o fulcro de Poets Without Pockets do esloveno Matjaz Pograjc, que abriu o Voorland. Num corredor do Akademietheater, três dançarinas e dois dançarinos brincam (a expressão é do coreógrafo) entre si, jogam jogos perigosos que faz lembrar Wim Wandekeybus mas que não é dele cópia, porque são sentidos. Em alguns momentos a coreografia parece uma sequência de cartoons do Tex Avery e a música original de Vrhovnik-Smrekar é importantíssima na criação deste ambiente lúdico e um pouco louco. Com alguns altos e baixos (a intervenção final do actor/intelectual que é soterrado pelos bailarinos sob um monte de cadeiras aparece um tanto despegada) a proposta de Pograjc entusiasma o público porque ela é de uma grande generosidade, vivendo de uma entrega total dos protagonistas, que se expõem a escassos centímetros da ultracompacta e minúscula plateia, e de uma lógica de liberdade criativa sem apego às fórmulas da performance “como deve ser”. A sinceridade como categoria estética.