SELECÇÃO DE BAGNOLET: DANÇA NA CAPITAL

BLITZ 7 Mar 1992Portuguese

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BLITZ no385, March 17th, 1992 O Maria Matos viu passar no seu palco as seis coreografias que se apresentaram à plataforma de pré-selecção aos Rencontres de Bagnolet, França. Duas noites artisticamente mornas, num evento importante para a indigente cena de apresentação da Dança em Portugal. “Não há obra póstuma em dança”. Com esta frase, Corrine Niclas resumia o impulso primeiro dos Encontros Coreográficos de Bagnolet. Produzir, mostrar e apoiar os criadores da dança hoje, porque o viver da dança é um viver apenas no presente – porque ela só existe em presença. Por isso mesmo, e mesmo tendo em conta que a qualidade geral da maioria das obras apresentadas na plataforma lisboeta não primaram pela qualidade artística (e nalguns casos nem mesmo técnica), as duas noites vividas no Maria Matos foram e são de extrema importância: há muito tempo não se via dança “independente” ser apresentada na capital com tais condições (o que para o caso significa apenas um palco, conforto razoável para o público e boas condições técnicas de cena). Na ressaca da Europália e perante a política lamentável que a SEC insiste em praticar (ou não praticar, já que política para a dança não existe) a produção e apresentação de novas criações parecem tornar-se cada vez mais difíceis em Portugal. Estes encontros de Lisboa podem ser um dos pólos futuros para pelo menos uma vez por ano se ver dança contemporânea portuguesa em Lisboa. (Continuo a dizer: querem ver Nova Dança portuguesa? Vão a Glasgow, Rennes, Lille, Paris, Hamburgo, Madrid, para verem as obras de Mantero, Camacho, Fiadeiro, Providência, etc., etc.).
Bom, parece que agora tenho que fazer crítica às obras. Cada vez mais me interrogo se o papel de crítico jornalístico serve para alguma coisa mais que não seja o de folheto publicitário para as coreografias com as quais empatiza e de objecto de ódio para as noites de ócio dos coreógrafos não agraciados com elogios. Um dos homens de teatro, crítico e ensaísta, que aprendi a admirar foi o espanhol António Lera. Este senhor disse e muito bem que dizer se uma peça é boa ou má é tarefa do Papa. No que tem muita razão. Este é um papel de autoridade. E de perplexidade. E assim entramos, perplexamente, na crítica à primeira coreografia apresentada nestes encontros.


1. 7 Coresde Victor Linhares

A música é uma colagem de vários excertos de diferentes obras de Puccini. No “cast” os mais relevantes nomes do ballet nacional (Cristina Maciel, Luísa Taveira, Isabel Fernandes, Fátima Brito, entre outras). Na coreografia final, o equívoco lamentável de uma linguagem truncada. Linhares, ao optar pela música clássica, pela utilização de corpos treinados em técnica clássica mas procurando claramente uma linguagem livre de códigos classicizantes, tentou sem êxito, na minha opinião, um produto final em que protagonizariam os confrontos e tensões inerentes ao choque de tradições e modelos diversos. Uma proposta pós-moderna no que ela teria de mais simples: colagem sobreposta de fragmentos descontextualizados. O resultado é, como já se disse, longe de ser minimamente satisfatório. As bailarinas, deslocadas da linguagem e da técnica que as suportam, perdiam-se nos diversos solos que uma moldura de colegiais enquadrava. A escolha deste contexto também por si só duvidosa no gosto, não se estruturava em qualquer outro jogo de sentido ou mesmo de non-sense. As coisas e movimentos pareciam suceder-se porque sim. O amadorismo da colagem da banda-sonora e o mau desenho de luzes completaram o quadro infeliz de uma coreografia sem sentido e sem conteúdo estético. Já agora, sem forma, sequer.


2. Fuego Quieto de Debora Greenfield

Fuego Quieto é um quarteto muito bem interpretado por quatro bailarinas que ao som de um flamenco depurado e de percussão e sonoridades mais ou menos abstractas se entregam a um jogo coreográfico de regras precisas e bem delimitadas. Veria esta obra quase como um exercício, bem feito e bem resolvido, tipo “teste final para licenciatura em coreografia”. Falta-lhe no entanto o arrojo de ideias ou de forma ou de sei lá o quê, porque a arte limpa, perfeita, bonita, parece-me cada vez fazer menos e menos sentido nestes dias de hoje. Estão a ver a posição de força do crítico em acção? A peça de Greenfield é bem construída, os movimentos de mãos que explora são belos e muito bem pensados, quer a nível simbólico quer a nível de uma “história” ou “etnografia” da dança flamenca, luzes e banda-sonora e figurinos encaixam perfeitamente no objecto coreográfico mas o crítico vai e diz que não gosta de dança quando ela é apenas corpos perfeitos em harmonia de movimentos síncronos e belos. Ele gosta da feitura. Raios partam os críticos.


3. A Ilha dos Amores de Rui Nunes

Recebeu o terceiro prémio do concurso coreográfico de Lisboa ao qual concorriam as obras que se tinham inscrito directamente na plataforma de selecção de Lisboa. (Os primeiro e segundo prémios não foram atribuídos. As outras obras concorrentes eram 7 Cores e Memória das Flores de Francisco Pedro).
Devo confessar que depois de ver várias vezes esta coreografia e em contextos bem diferentes, me parece que, apesar de tudo, a sua existência enquanto objecto cénico ganha pleno sentido (i.e. toda a peça ganha pleno sentido) em palcos pequenos, claustrofóbicos, que de certa forma constranjam os movimentos largos dos bailarinos, que acentuem a insularidade daqueles corpos condenados a se tocar, a viverem em presença permanente, para a paixão ou para o conflito. A força dos espectáculos das artes performativas reside na sua constante mudança dinâmica. Aqui, no palco do Maria Matos, pareceu-me que, embora a interpretação de todos os bailarinos tenha sido francamente melhor do que no espectáculo que vi na Bélgica, aquando da sua apresentação no Festival Klapstuk, A Ilha dos Amores apresentou-se mais como um arquipélago de emoções e acções um tanto despegadas, sem centro. Um centro que, mais uma vez, me parece ser possível encontrar com uma concentração espacial da acção. E com um maior cuidado no tratamento da figura interpretada por Ezequiel Santos.


4. Memória das Flores de Francisco Pedro

Francisco Pedro é um óptimo bailarino. E esta peça demonstra como, por vezes, produzir para uma certa “encomenda” ou programação pode ser contraproducente. É que os regulamentos do Festival de Bagnolet exigem que as coreografias concorrentes tenham no mínimo três intérpretes. Obviamente Francisco Pedro não podia fugir a esta exigência e aqui residiu, no meu entender, o principal problema de Memória das Flores. É que a coreografia não é mais do que um grande solo ilustrado, um solo de Francisco Pedro, ao som de Bach, Mozart e Philip Glass. Nada de errado nesta solução encontrada (é sempre saudável furar as malhas do sistema) se não fosse a evidente redundância, para não dizer despropósito, dos outros dois bailarinos, principalmente o “papel” de Ana Bergano. Ao fim de certo tempo torna-se óbvio que estamos perante o puro gozo de dançar músicas que agradam ao coreógrafo, o que é até muito salutar em termos éticos e estéticos, mas a inspiração pareceu faltar a meio da peça e a coisa tornou-se um tanto monótona. Apenas na última parte em que o movimento se torna largo e “dançado”, com os bailarinos evoluindo do fundo do palco em direcção ao público, a peça retoma um pouco de interesse mas a técnica de Bruno Cochat e principalmente a de Ana Bergano contrastam em muito com a do próprio coreógrafo e o resultado não foi nada brilhante. Mas acho que do Francisco Pedro se pode esperar mais. E melhor.


5. Só um bocadinho, de Clara Andermatt

Em termos de reacção do público, foi a coreografia destes Encontros. Em termos da minha reacção também. Com Só um bocadinho, obra estreada em 1990, percebe-se o caminho estético que Andermatt procurou aprofundar e explorar nas suas obras posteriores que já pudemos assistir no Acarte. E aprecia-se mais. Pois em Só em bocadinho as suas obsessões e idiossincrasias – a sexualidade, ou melhor, o sexo nu e cru, o ridículo da sociabilidade, a manipulação de símbolos próprios que se organizam num bestiário ibérico, o humor – surgem de forma concisa, precisa, sem barroquismos e artificialismos. A coreografia vai directamente ao ponto, negligenciam-se as transições, as explicações, não há tempo a perder com tais pormenores, existe-se no plano poético próprio da dança: nada de narrativas – vive-se a imagem em delírio. Cenograficamente e sonoramente é uma obra bem tratada, com um profissionalismo só encontrado neste certame n’ A Ilha dos Amores de Rui Nunes. Fiquei a pensar se gostava ou não do fim da coreografia, uma coisa assim abrupta, inesperada. Cheguei à conclusão que gosto.


6. Meeting Point de Monica Runde

Um senhor que muito aprecio chamado Gregory Bateson disse um dia que a alegoria não é arte, é a pior das perversões que a ela pode acontecer. Usar-se de um suporte estético qualquer para transmitir uma mensagem de cariz pedagógico é o primeiro passo para a catástrofe estética. A obra de Monica Runde é assumidamente uma história pedagógica sobre a ontogénese um punk, do nascimento – literalmente – até ao primeiro blusão de cabedal e consequentes experiências de passagem – sexo, passa, revolta contra os velhos. Se em termos de análise (ou psicanálise) da peça a coisa é super estimulante (principalmente o enorme útero de forma fálica onde a protagonista tem a sua primeira experiência sexual) em termos coreográficos a coisa é extremamente pobre e chata até dizer chega. Cânones, arabesques, “ela corre para ele e salta agarrando-se-lhe ao tronco” (o movimento mais batido da história da dança contemporânea), uníssonos dança-jazz, o olhar para o público em ar de desafio, pura e simplesmente não funcionam. Não porque “já se viu”. Não acho que a arte seja a procura absurda do nunca visto. Mas porque trata-se de um encadear de fórmulas, um viver da superfície sem um sentido, e um sem sentido que o é por falta de talento artístico e não por opção surrealizante ou dadaísta ou outra coisa qualquer. Pouco sincero e pouco inteligente. Má arte porque existe no lugar-comum da pseudo-revolta.