MEG STUART: EXTIRPAR A DANÇA

BLITZ 26 Nov 1991Portuguese

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Meg Stuart vai apresentar no Acarte a sua coreografia Disfigure Study. Acorram em massa, gentes, porque vale a pena. Eis o que ela tem a dizer. M. S.: Naquela altura eu só queria fazer uma coreografia e só queria fazer um trio, mas sentia-me muito frustrada havia dança a mais nesse trio e as partezinhas de que eu gostava não eram assim tão físicas. Havia uma parte onde eles se limitavam a medir-se uns aos outros, mediam-se uns aos outros com os seus próprios corpos, assim olha, como este braço contra o teu, estás a ver, esse género de coisa, e foi então que eu comecei a ficar verdadeiramente fascinada com Partes do Corpo. É certo que um movimento direccionado para uma tarefa cria algo emocional mas isto das medições era a coisa mais simples que havia e todo aquele “movimento de dança” estava ali a mais, não se encaixava na peça. De qualquer maneira, acabei por abandonar essa peça. Fi-la e pronto, foi tudo. E então... e então... Bom, o Bruno Verbergt (director do Klapstuk Festival) tinha visto o vídeo Held, por isso quando ele veio ter comigo, disse: “eu quero esta peça no teu espectáculo”. Foi esta a proposta dele: uma vez que não conhecia muito bem o meu trabalho, ele de certa forma garantia alguma coisa, o que eu compreendo. E então havia o Held e pensei: faço um solo, um dueto e um trio. Tudo muito simples, muito claro, haveria três secções, uma coreografia em três partes. E fiz o solo durante seis meses, começando em Setembro de 1990 e mostrando-o em Março. Durante todo esse tempo trabalhei no solo que executo no início da coreografia. Em Julho comecei a tentar fazer o trio e houve toda uma série de problemas...
A. L.: Tiveste problemas com a bailarina inicial... M.S.: Exacto, já sabes a história toda... Bom, acabei por fazer com todo o material que já tinha na altura estas “poses” e esta história toda à volta de sentar e de deitar, que originalmente estava pensada para três pessoas mas que as circunstâncias aqui em Lovaina durante este Verão acabaram por a transformar num dueto com o Francisco. E eu gostei mesmo de fazer esse dueto. Até ao último minuto eu continuei a tentar fazer um trio, eu tinha uma quantidade de frases de dança mas... Eu tinha frases de dança e tinha estudos de dança e o que aconteceu foi que eu acabei por deitar fora tudo o que era frases de dança porque os estudos pareciam-me muito mais interessantes, o que tem a ver com o sentido.


Pensar que o público pensa que eu penso que...

A. L.: Disseste que na peça que tinhas feito em Nova lorque havia “dança a mais” e agora estás a dizer que preferes “não-dança”. Porquê? Achas que a dança tem pouco a dizer? M. S.: Eu acho que mover apenas, fazer frases, todo o processo através do qual as pessoas são ensinadas a fazer coreografia... Tu és ensinada a fazer coreografias do género: primeiro fazes uma frase, estás a ver, fazes uma frase e então fixas a frase, e então vais e manipulas a frase tendo em mente “harmonia” e “desarmonia” ou “espaço”, sabes como é... Eu simplesmente não acho que esse seja necessariamente o modo de se fazer as coisas. Eu adoro dança mas eu sinto que o que eu vejo por aí... Eu preciso de clareza a cada momento. Eu preciso que o público pense que sabe o que é que se está a passar. E eu preciso de saber que eu penso que há algo a passar-se, de modo que preciso de ter um contexto. Eu adoro movimento mas preciso de ter um conflito, um conflito quase como num conto, onde tu precisas de uma exposição, depois um conflito, depois uma resolução. Eu penso mais assim dessa maneira. Ter apenas frases ou ter apenas dança sem contexto não funciona. É por isso que eu digo muitas vezes que o que eu quero é extirpar a dança sem objectivo.
A. L.: E então dás essas pistas para as pessoas pensarem que sabem o que é que se está a passar... M. S.: (risos) Sim... Há que haver uma razão para alguém que esteja a dançar. Não pode ser apenas dançar para mostrar quão virtuosamente uma pessoa consegue mexer-se, o que também é belo, mas é preciso haver subtextos, não pode ser apenas essa coisa do movimento.
A. L.: Estás consciente desses subtextos? M. S.: Estou consciente. Pelo menos sinto que estou. Passei estes cinco anos a dançar apenas movimento pelo movimento, porque trabalho na companhia do Randy Warshaw (desenhador das luzes deste espectáculo) e ele dançou para a Trisha Brown durante sete anos.
A. L.: É uma dança mais abstracta... M. S.: É, mas o que eu aprendi com o Randy é que tu também não precisas dessa coisa emocional ultrapassada. Podes ter um braço esticado ou mostrar simplesmente os ângulos do teu corpo com um propósito e isso pode-se tomar em algo, tal como o teu corpo a cair, cair... Isso pode tornar-se emocional, um movimento, depois outro. Um movimento puro que vais criando pode envolver-te, podes emocionar-te com ele! Não é preciso ser tipo buááá, e ai ai ai, e essas tretas, tal como também não tem que ser “dança”.


Complementos perfeitos

A. L.: Porquê o Francisco Camacho e a Carlota Lagido? M. S.: Gosto do sentido de tempo que eles têm. E o tempo é verdadeiramente importante no meu trabalho. Quando tenho uma ideia, ou quando me ocorre uma imagem, como essa coisa das partes do corpo, são apenas palavras. Como na coreografia, na parte inicial das pernas: “beija os meus pés”. As pessoas diziam que era um cliché e essas tretas. E o Francisco e a Carlota estavam perfeitamente dispostos a estarem ali sentados e o Francisco disposto a fazer uma dança para duas pernas... Para muita gente isso não é “dança”. Acho que os bailarinos americanos estão mais numa de “eis aqui todo o meu corpo, eu treinei todo o meu corpo para que ele se mova no espaço” e é tudo à volta do “eu, eu, eu”. O Francisco e a Carlota deram-me todo o tempo de que eu precisava.
A. L.: E a Carlota? Parece que a princípio estavas renitente por ela ter um ar muito feminino... M. S.: Eu tinha uma ideia para a peça. Acho que é mesmo importante ter duas mulheres e um homem manipulando as duas. A rapariga que iria dançar originalmente no dueto parecia-se exactamente comigo, havia uma certa piada nisso, podíamos ser a mesma pessoa, ela podia fazer a minha parte, e eu a dela. Agora, apenas eu posso fazer a minha parte. Quando tive problemas com ela e optei pela Carlota, tive de fazer uma escolha mental. E acho engraçado eu ter este ar masculino e surgir esta mulher muito feminina. Mas a Carlota ficou muito mais forte e agora acho que está perfeito, um casting perfeito para essa parte.
A. L.: E os outros colaboradores? M. S.: O Hahn Rowe já tinha feito música para o meu solo e a Eva tinha feito o figurino. Acho o Hahn um músico verdadeiramente sensível ao movimento, nunca precisa de estar a mostrar aquilo de que é capaz de fazer. É um músico brilhante, está sempre atento a tudo, acho que é o complemento perfeito para o meu trabalho. E o Randy também tinha feito as luzes do meu solo. Sabes, é o meu primeiro grande trabalho e senti que precisava de ter muita segurança em tudo...
A. L.: Sabes, acho que a tua peça é muito portuguesa... Escura, obsessiva, cheia de fantasmas... M. S.: Quando for mais madura no meu trabalho vou tentar fazer uma dança alegre (risos)...