APOCALÍPTICOS E INTEGRADOS

BLITZ 5 Nov 1991Portuguese

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Klapstuk 91 chega ao fim da sua segunda semana. Com Jan Fabre pelo meio e o início do ciclo “Os Novos Portugueses» no âmbito da Europália Portugal. Bom, para seguir a linha cronológica habitual nestas críticas, teria que começar pelo espectáculo de Fattoumi e Lamoureux, Aprés-midi. Mas já em Abril falámos dela e eu diria pouco mais ou menos o mesmo hoje em dia. Talvez fosse um bocado menos tolerante. Vamos então para o próximo...


1. Kristen Van Reusel: Sóla

… que, como podem ver é uma próxima e, como podem também ver, apresentou um solo. O que felizmente não puderam ver foi o infeliz momento coreográfico. Van Reusel executa pobremente um ainda mais pobre exercício coreográfico ao som baixinho de Manitas de Plata e tendo como silencioso e hierático espectador uma concha gigante pousada sobre umas patas de aranhiço ao fundo do palco. Contado parece uma homenagem delirante a Salvador Dalí (até realçada pelos verdes e azuis do desenho de luzes) não é mais do que um disparate sem sentido ao serviço das pobres capacidades técnicas e estéticas da coreógrafa. Talvez um dos mais fracos espectáculos do Festival, até agora…


2. Dennis O’Connor: The ostrich and the spider are said to hatch their eggs by looking at them

Dennis O’Connor foi bailarino na companhia de Merce Cunningham. Um dia fartou-se, deixou o mestre e criou um certo nome como coreógrafo-intérprete na cena nova-iorquina. Daí que The ostrich and the spider... fosse aguardado com bastante expectativa, tratando-se, ainda por cima, de uma estreia absoluta. O’Connor apresentou-nos um dueto dançado por ele e por Joseph Lennon, com música de David Linton e luzes de Cis Bietockx. E eis que estranhamente nos deparamos com todo o universo e linguagem de Merce Cunningham numa apropriação bastante desapropriada e principalmente numa interpretação que na noite de estreia esteve perto do caótico: Cunningham a tremer por todos os lados é o mesmo que ouvir discos na rotação errada: é caricato. E se a música era excelente e altamente irónica, não deixava de trazer uma atmosfera cageana, que só acentuava a herança de Cunningham. Durante um breve instante, a coreografia lança-nos sinais de auto-ironia e de espécie de colectânea de clichés das diferentes técnicas do vocabulário da Modern Dance e mesmo do ballet. Masas são ecos perdidos na estrutura confusa da obra. Tão confusa que a torna um objecto curioso. Mal acabado, preso, sem um meta discurso organizados e crítico mas mesmo assim com ecos de uma proposta originalmente interessante. O pior foi mesmo a técnica dos bailarinos.


3. V-Tol/Mark Murphy: Crash and Burn

Mark Murphy criou uma obra claramente estruturada à volta do conceito de espectáculo de rock. Com uma artilhadíssima bateria, impondo-se à boca do palco, a peça começa com o baterista, encaminhando vagarosamente para o instrumento sobre um foco de luz. Musicalmente, até ao fim, Nic Murcott explorará até à exaustão todos os clichés e ritmos do rock e do pop, com uma ou outra leve incursão a polirritmias africanas. Entretanto, os bailarinos James Hewitt, Kelly Mancini, Mark Murphy e Kristina Page entregam-se ao que se poderia chamar uma coreografia “Jovem” no sentido “Fixe-Cartão-Jovem-Contra-a-Sociedade-de-Consumo” do termo. Claramente inspirados no que os La La La Human Steps propõem, as coisas até não correram muito mal, enquanto há apenas exploração de movimentos: não são muito ricos mas também não caem na pretensão e são convincentemente executados. O problema é que a peça por ser “Jovem”, tem que ter uma mensagem. E aqui é o descalabro. Obviamente que os bailarinos e bailarinas andam aos pares heterossexuais e andam à pancada e depois fazem amor e depois andam à pancada e por aí fora. Entretanto, a bateria quase se desconjunta e as limitações técnicas do baterista começam a fazer sentir os seus efeitos no sistema nervoso periférico do público. A coreografia termina como começou, que é para dizer que não há nada a fazer. E a dança em Inglaterra parece continuar num marasmo.


4. Jan Fabre: Sweet Temptations

Jan Fabre é um caso único. Primeiro há que dizer que conseguiu mais uma vez mexer de facto com os nervos do público belga, que apesar de a tudo bater palmas e ser muito bonzinho, não pôde reter ao fim das três horas e vinte de espectáculo inflamados búus. É claro que houve também inflamados bravos e muita, muita debandada. Porquê este particular interesse na reacção do público? Porque é precisamente nessa reacção que Jan Fabre está interessado enquanto artista. As suas peças não são mais do que um exercício cruel, inteligente, sádico e perfeito à capacidade de resistência do público (e do intérprete) perante a extenuação total dos limites de cada pequenina parcela de espectáculo. Sweet Temptations é uma peça de escárnio e maldizer. É uma cuspidela no olho do mundo ocidental. Vive basicamente de dois confrontos: a nível plástico, a imposição de uma poética da simetria e sua desconstrução até ao caos (literalmente) orgiástico; a nível de conteúdo, o confronto do saber (encarnado no corpo amorfo de Stephen Hawking) e do prazer insano (macaqueação dos Jogos sem Fronteiras, dos cantos dos Hooligans, dos megaconcertos rock, dos jogos de azar).
É um espectáculo que enche completamente o espectador. Melhor: satura-o, esfrangalha-o, irrita-o. Nisto e na precisão absolutamente impressionante da encenação (não há nada que não funcione numa precisão de máquina perfeita, incluindo o caos) reside o génio de Fabre. Na auto-consagração desse génio enquanto folclore reside a sua perdição. Esta colagem fragmentária de excessos não é mais do que uma exibição caricatural do que é ser-se Fabre. A basicidade na exploração do conteúdo ideológico, o seu calcanhar de Aquiles.