KLAPSTUK’91: PARTE PRIMEIRA

BLITZ 22 Oct 1991Portuguese

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Vinte e três espectáculos diferentes espalhados por seis salas, conferências com os coreógrafos, mais de cem horas de vídeo-dança à disposição do público, um seminário internacional de críticos: é a grande festa da Dança em Lovaina, o Klapstuk Festival’91 com ganas de afirmação definitiva na cena internacional. Bruno Verbergt, o director do Festival desde a sua edição de 89, decidiu-se desta vez a apostar fortemente na produção de peças novas e apresentação de peças de “novos” coreógrafos. Com uma organização eficiente e simpática o Festival abriu com duas estreias mundiais. Sobre elas e ainda mais aqui se inicia o relato enquanto não chega a semana dos portugueses...


1. Blok and Steel, Be Long

Se os replicantes de Blade Runner dançassem ou coreografassem seria certamente como o fazem Suzy Blok e Christopher Steel. Uma frieza nascida da perfeição rigorosa do movimento acrobático e atlético, dos corpos perfeitos e musculados, do esquematismo básico da coreografia que se apresenta claramente delineada como um programa de computador.
Mas também uma ingenuidade infantil que tudo reveste, uma ingenuidade de máquina feita carne. A peça é toda ela um statement sobre a identidade dos próprios bailarinos – coreógrafos. Fazem-se perguntas “profundas”: “o que queres”, “de que é que tu gostas”, “o que odeias” – e dão-se respostas “simples” (“uma cerveja”, “love”, etc.). O look é pós-neo-punk colorido e a música é a dos bons velhos sixties/seventies com Jimi Hendrix e Rolling Stones. O problema é que trinta minutos são excessivos para os parcos recursos coreográficos dos autores quando o objectivo final é dizer de uma forma bem explícita que mesmo que Jagger afirme que You can’t always get what you want, há que tentar. Mesmo que com isso se ganhe a morte. Tal e qual como os replicantes. Só que mais patético.


2. Angelica Oei, Aliud

Angelica Oel apresentara já há uns três anos no Acarte uma obra que considero extremamente irritante, onde três meninas em traje escolar se entretinham durante horas a mostrar a sua habilidade em espalhar areia no chão e a ser queridas e sorridentes como mandam os preceitos coreográficos em vigor nos Países Baixos depois de Keersmaeker. No entanto, a coreógrafa parece ter perdido ou deixado os estereótipos feminino/histérico (afinal uma recuperação perversa e duvidosa de preconceitos oitocentistas, o que não deixa de ser um fenómeno cultural curioso), para se dedicar a uma dança mais centrada no movimento puro, onde elementos teatrais aparecem de quando em vez. Como já disse, é o que gasta cá na terra e ninguém é de ferro para fugir aos espartilhos culturais. A coreógrafa conseguiu no entanto, bem mais do que isso. Aliud tem o dom de na sua hora e meia de duração provocar no público: 1. espanto horrorizado, 2. horror irritado, 3. torpor hipnótico, 4. curiosidade hipnótica, 5. vontade de ir jantar, 6. piedade pelos bailarinos.
São de facto (e com apenas uma excepção, a 4, de que já falaremos) os elementos extra-coreográficos que salvam a obra do descalabro: os bailarinos são óptimos e entregam-se totalmente, a música tradicional africana (de uma ponta a outra de África) é maravilhosa e o trabalho de luminotecnia extremamente original e tecnicamente próximo da perfeição. Com efeitos extremamente simples, Renne Torensam e Reint Baarda criaram um ambiente muito particular e feliz. A excepção n.º 4 é um momento muito bonito em que os bailarinos agrupam-se dois a dois e giram a toda a largura do palco ao som de música vocal feminina que só faz lembrar Reich mas tem todo o calor das noites africanas. Aqui Angelica Oel foi muito sensível e inteligente. Fiquei sem perceber o porquê de tudo o resto, que é simplesmente grotesco.


3. Meg Stuart, Disfigure Study

O que mais fascina e perturba o espectador ao visionar este “estudo” de Meg Stuart é a percepção de que se está na presença de uma total exposição da coreógrafa. De forma quase despudorada, Meg Stuart exibe cruamente os seus fantasmas e obsessões, num ambiente negro realçado pelo trabalho das massas de luz branca que definem o espaço claustrofóbico que rodeia a existência: deles e nossa. A sensualidade dos movimentos que se acentua na violência absurda das situações criadas entre os bailarinos, a subtil manipulação das nuances psicológicas que motivam cada gesto, cada olhar, a melancolia selvagem dos duos de Meg Stuart com os bailarinos Carlota Lagido (que na noite da estreia terá realizado uma das melhores interpretações da sua carreira) e Francisco Camacho, conferem à coreografia uma qualidade bem pouco americana. Algures entre o abstraccionismo típico naquele lado do atlântico e o expressionismo que deste lado pontifica, Meg Stuarte criou uma obra afinal bem próxima da atmosfera portuguesa.
Fundamental e fabulosa é a música original de Hahn Rowe (dos Bosho e Hugo Largo, estão-me a ver o cabedal do homem) que dialoga a todo o instante com cada gesto, cada intenção, dando um toque de paranóia lânguida (com o violino eléctrico sobre banda pré-gravada) ou de suspense arrepiante (com a guitarra). O conhecido coreógrafo e bailarino Randy Warshaw foi o responsável pelas luzes que, se realçaram por vezes bem a intencionalidade da obra, por outras terão pecado por excesso, perturbando mais do informando. Meg Stuart estará no Acarte em fins de Novembro. Não percam. A mulher é uma bomba.


4. John Jasperse, Half Step Drop

Mais um nova-iorquino em Lovaina. John Jasperse foi bailarino de Anne De Keersmaeker e o público lisboeta pôde vê-lo nos encontros Acarte de 89: era um dos fantásticos padres de Ottone Ottone. A obra que aqui apresentou é um dueto com Conor McTeague, com música do conhecido Chris Cochrane. A peça vive fundamentalmente da exploração virtuosística das potencialidades físicas e técnicas dos bailarinos que são aliás, do melhor que há. Mas em termos de linguagem, parece-me que Jasperse encontra rapidamente os seus limites, quer a nível de movimento quer a nível do próprio conteúdo coreográfico. A opção pelo privilegiar do velho tema da tensão agonística, com simulação pontual de uma espécie de combate, tendo como contraponto então o já esperado tema da complementaridade e solidariedade, acabou por dar um “recheio” pouco estimulante e interessante para o óptimo movimento em palco. Fica-se com a sensação de se ter visto uma obra à procura do seu centro, da sua razão de ser.


5. Mónica Valenciano, Puntos Suspensivos

É-me difícil falar de Puntos Suspensivos. Terá sido até agora a mais poética e tocante das obras apresentadas no Klapstuk. Intersecção perfeita do teatro e da dança, a obra da espanhola Mónica Valenciano é uma viagem lúcida e tocante ao imaginário ibérico. A sua opção pelo universo clownesco e infantil para ilustrar os movimentos subtis de impregnação dos modelos culturais da nossa (ibérica) desgraça – religião como opressão, escola como opressão, trabalho como opressão, vida como opressão, mas opressão patética e sempre untuosa e pequenina – opção, dizia, é admirável pois nunca descai para o lado queridinho que normalmente espreita estas coisas. Nos antípodas formais e estéticos de Meg Stuart, as duas coreógrafas acabam por se aproximar uma da outra no modo absoluto, como se desvendam em palco; com Mónica Valenciano, este exercício, criou momento de forte emotividade e beleza. Juana Cordero, a outra intérprete da peça, contraponto da coreógrafa quer física, quer psicologicamente é igualmente brilhante na interpretação. Fica ainda na memória o belo cenário melancólico, também de Valenciano, e a inconfundível qualidade do movimento da coreógrafa. Uma obra quente, nostálgica, fortemente irónica e mesmo cruel que passou a milhas de distância dos corações dos belgas. Movem-se vontades para trazer o espectáculo a Portugal. Esperemos que sim.


6. Steve Krieckhaus, Address e Missouri Pacific

Os dois curtos solos deste coreógrafo/bailarino de Filadélfia foram mais uma surpresa agradável deste Klapstuk’91, que até agora tem revelado uma qualidade média bastante alta nas obras apresentadas. Parece haver autores-intérpretes para quem dançar não é mais do que fazer um uso naturalíssimo de uma linguagem outra, interiorizada bem fundo no corpo. As suas danças resultam assim numa espécie de monólogo, onde reconhecemos uma gramática, as várias palavras que surgem uma e outra vez, o padrão de ligação entre elas, para no fim ficarmos com as sensação estranha de ter estado a ouvir um discurso muito antigo, algo que deveríamos ter compreendido num tempo em que os corpos ainda falavam como a linguagem. Krieckhaus é assim a dançar. Algures entre o autista paraplégico e o animal primordial, ele cria um movimento e um discurso de rara calma e beleza. Uma energia apaziguadora. A sua dança é como a banda sonora que ilustra a peça Missouri Pacific: sons perdidos na natureza envoltos discretamente (mas significativamente) em ruídos do quotidiano urbano, mas sem a basicidade do contraste da valorização moral de um ou outro, são apenas vozes do mundo que nos falam. Tal como o seu corpo. Novamente, o público ficou a milhas.