VIVÓS FRANCESES!

BLITZ 24 Sep 1991Portuguese

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In BLITZ no360, September 24th, 1991 Terminaram os Encontros Acarte’91... Os franceses empatam com os belgas. 2 a 2 no final. Os Encontros é que parecem um pouco perdidos.

1. De Rotterdamse Dansgroep

Um dos mistérios na programação destes Encontros terá sido sem dúvida a escolha de uma companhia de reportório como é o caso desta. Uma coisa será eclectismo na programação mas quando o eclectismo se torna desculpa para se apresentar não importa o quê dentro de um festival com tradições, então a coisa muda de figura. É uma questão de linguagens e de correntes estéticas; por mais diversidade que encontremos entre um Johan Kresnik e os The Kosh, ou entre Keersmaeker e o Altroteatro há um pano de fundo que os suporta a nível histórico e, se quisermos, a nível de sentido. A presença deste grupo de reportório nesta edição dos Encontros pode fazer parecer ao público menos avisado que os criadores europeus em dança esgotam-se em Teresa de Keersmaeker e Vandekeybus e o resto é o que se pôde arranjar para encher o tempo. Depois há ainda a questão do critério. Posso partir do princípio de que sou eu que estou de má vontade em relação a esta linha ultra-ecléctica de programação, e conceder então que se os programadores acham por bem trazer não importa o que se mexa em palco hoje em dia têm todo o direito de fazer o que julgam dever fazer, mas ao menos atenham-se então ao contexto de Dança da Europa por si próprios definido. O facto é que o Rotterdamse Dansgroep é um grupo de reportório contemporâneo com tradição coreográfica marcadamente norte-americana, que veio dançar obras de coreógrafos norte-americanos (o coreógrafo holandês Tom Simons tem a sua própria companhia nos Estados Unidos desde 1978), o que confunde um pouco as coisas. O que temos é uma ausência de critérios estéticos e de definição/afirmação do que são os Encontros Acarte. Ou do que virão a ser.
Já o espectáculo em si, constituído pela apresentação de Brief de Amanda Miller, Inlets de Merce Cunningham e de Sleepless Nights do referido Tom Simons, pautou-se pela excelência dos bailarinos (e lá estava Daniela Graça, ex-Companhia de Dança de Lisboa), pela coreografia de Merce Cunningham com a música única de John Cage, pelo generalizado mau gosto dos figurinos, pela inadequação da escolha do anfiteatro ao ar livre para apresentar peças em que as massas e os recortes definidos de luz são fundamentais para a leitura das obras, e pelo atestado de demência estéticas-coreográfica passado ao coreógrafo holandês Tom Simons pelo próprio Tom Simons ao criar uma coreografia verdadeiramente serôdia e irritantemente pateta. Se Brief é um exercício correcto dentro de uma linguagem convencional do “ballet moderno” (é sem dúvida “ballet”) e Inlets tem, no mínimo, um valor histórico, Sleepless Nights é daqueles objectos que nos faz pensar com desolação na futilidade do Cosmos e da Vida e na utilidade de uma Magnum 44 quando bem utilizada... A colagem musical entre Phil Spector, Glenn Branca e Mozart pode até ser interessante – mas a anulação de uma linguagem original por parte do coreógrafo para se instalar dentro de um “género” que se reputa de sério dentro da dança moderna é algo de aflitivo.


2. Concertino pela Companhia de Catherine Diverrès

Há um lorde inglês qualquer que há poucos dias viu a sua fortuna pessoal reduzida de vários milhões de libras para quase zero sem no entanto ter sido roubado ou errado nas suas especulações na bolsa. Ele tinha sido uma dupla vítima: da verdade e deste nosso (ocidental) louco modo de ver a arte. A fortuna do nobre inglês consistia basicamente em alguns quadros de Rembrandt. A desfortuna consiste na revelação de que estes não tinham sido de facto pintados pelo mestre mas sim pelos alunos que acorriam às catadupas ao seu atelier a fim de dominarem os segredos do seu engenho, logo da sua arte. Para o ocidental é quanto basta para o logro: o autor é mais do que a obra, ou melhor, é o autor que dá valor à obra mesmo que sejam precisos raios X para distinguir entre o “original” e a “cópia”, e a obra quer-se original, mesmo que neste caso Rembrandt tivesse muito provavelmente uma acção análoga à dos modernos produtores discográficos: a sua marca pessoal está lá, ele é o artista atrás do artista, para o bem e para o mal.
Tudo isto a propósito de Concertino de Catherine Diverrès, o espectáculo que encerrou os Encontros. Nesta obra de Diverrès o espírito e a forma da dança teatro de Pina Bausch são mais do que influências: eles surgem como um modelo que será claramente apropriado e utilizado, um paradigma que a coreógrafa explora com a naturalidade de quem acha que é aquele o caminho a seguir, é ali que reside a verdade artística e que há que explorar o território. Fá-lo com a naturalidade de quem respeita um mestre e, julgo, com muita competência e despretensão. O que é raro hoje em dia. É certo que Pessoa é apenas um pretexto para a coreógrafa criar a obra. Na verdade, creio que Diverrès não buscou sequer a exploração de um universo pessoano: seguiu alguns pensamentos-chave do Livro do Desassossego, despojando-os do seu autor e apropriando-se deles com o à-vontade de quem lida com máximas de indiscutível universalidade: melhor homenagem ao poeta não há. O espectáculo em si vive de uma sucessão de cenas aparentemente desconexas, onde a banda sonora, sempre excelente e integradíssima, marca o respirar dos quadros que se sucedem bem Pinabaushianamente, as musiquinhas dos anos 20 e 30 unem a acção dispersa e absurda dos bailarinos ensimesmados na sua pessoa e no seu confronto com o outro. Isto principalmente no início; mas logo a autonomia da autora se impõe na glosa ao mote formal e a coreografia vai se desenrolando numa crueza gestual mais própria, onde um espectacular jogo de luzes, o cenário e os belos figurinos se conjugam na criação de uma dispersão visual e num ambiente hipnótico; a banda sonora muda de tom, que vai de ruídos de água a correr, a sons confusos de vozes (tudo muito baixinho), a um desafinadíssimo solo de violino. Plasticamente será um dos mais belos espectáculos dos Encontros. Sonoramente também. E há ainda os bailarinos que são óptimos (principalmente os homens). Talvez a sucessão de quadros tenha alguns problemas sequenciais, talvez algumas cenas (como a cena em vermelho com o seu jogo de cabra-cega) sejam excessivas e menos interessantes, mas no todo estamos perante um jogo bem feito sobre o que é estar no palco e maravilhar o público com surpresas simples e eficazes (o vaso que flutua, a mulher de quatro metros). O final, com os bailarinos em contraluz com os jardins da Fundação ao fundo, numa fila ao som de um mambo bem anos 40, saindo de cena fez-me lembrar o Stardust Memories do Woody Allen. Eu gosto destas coisas que é que vocês querem... Não é original? Não faz mal. Principalmente não é uma cópia.


3. Deux Histoires de Valletti

São dois monólogos de teatro e por isso não me alongo muito. Mas é muito, muito bom. Ela e ele são dois daqueles seres completamente fora e obsessivos que se envolvem numa crosta dura de normalidade para apenas brevemente, imperceptivelmente, deixarem transpirar o nível astronómico de loucura e solidão que lhes vai na alma. São bichos da cidade. Ela é Monique Brun e espera pelo seu homem, fala sem parar para esconder a sua solidão e obviamente apenas a realça; a solidão das mulheres sós que esperam o seu homem que nunca chega(rá). Ele é Gerard Morel e conta-nos na sua insignificância, a insignificância da sua presença na Conferência de Brooklyn Sobre as Galáxias. Ele não se dá conta do seu ridículo, o que o torna mais patético; o patético dos homens sós em torno do seu jornal e do seu modo desconfiado de viver, sempre desvendando complots que só eles fazem existir. Valletti é o autor e construiu duas peças brilhantes. Foi excelente.