OS ÁCIDOS E OS CORROMPIDOS

BLITZ 10 Sep 1991Portuguese

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Começaram os Encontros Acarte’91, o festival de Dança e Teatro europeu que agita as hostes performativas da capital. Até dia 15, tudo é desculpa para passar pela Gulbenkian, no primeiro encontro com a marca definitiva do sucessor de Madalena Perdigão.

1. Duarte Barrilaro Ruas e O Povo das Chuvas Ácidas

Nos press-release, nos descartáveis com a programação e nos convites, o espectáculo inaugural dos Encontros é o MacBeth pelo Bremer Theater (apresentado à noite). No mundo real, o primeiro espectáculo dos Encontros foi O Povo das Chuvas Ácidas, a única obra portuguesa apresentada este ano (no mesmo dia, à tarde). Não se tratou de uma alteração de calendário de última hora. Foi uma opção clara de adulteração da verdade ou de camuflagem estaliniana da história. Se um espectáculo abre de facto os Encontros, é o primeiro a apresentado, por que diabos é relegado para segundo plano? Sabe-se do prestígio que cai sobre os espectáculos que abrem e fecham qualquer festival. O único motivo do camuflar da realidade pela imposição de uma lógica de denegação, será então ou uma certa desconfiança por parte do programador na produção de Barrilaro Ruas, ou uma falta de confiança no assumir dos próprios riscos que o Acarte corre ao apresentar uma primeira obra total. Ambas as atitudes são francamente incompreensíveis.
O espectáculo. O cenário é uma enorme caixa negra que se vai desvendando pela acção dos dois actores (Barrilaro Ruas e João Reis) que rebentam por dentro com as paredes da prisão monstruosa, reticulada, que tolhe os movimentos e limita as palavras. Os movimentos são inseguros, desconexos, cheios de tiques e receios patéticos. Movimentos de gente perdida. As palavras são de desespero e desencanto: mostra-se a desolação destes nossos “corpos ferrugentos” apontam-se soluções radicais: há que limar os corpos para que não haja fricção nos pontos de contacto. Os dias e as chuvas são ácidos. E enquanto os estrondos das placas arrancadas enchem o ar, enquanto os casulos quadrados vomitam os corpos dos actores e sapatos, e a música de Carlos Zíngaro (live! Estaremos mesmo em Portugal?) vai criando um ambiente contrastante com a aspereza de tudo aquilo (a acidez das rectas e dos ângulos), O Povo das Chuvas Ácidas é um espectáculo empolgante. Até à cena que resume o desalento suicida do homem: os actores, vestidos com casacos cobertos de lâminas de barbear, divertem-se a rasgar mutuamente (não literalmente, não se preocupem) o corpo um do outro numa ligeireza de não sofrimento, como se tudo fosse uma brincadeira mais ou menos patética, como se o encontro só existisse enquanto confronto. João Reis esteve excelente, criando uma personagem consistente e interagindo muito bem com Barrilaro Ruas.
A partir deste momento, Barrilaro Ruas dá uma inflexão ao espectáculo situando-o mais no campo do formalismo plástico, com a longa cena hipnótica da coreografia dos pés e a “dança da chuva” mecanizada (onde João Reis revela pouco à-vontade num campo que lhe é estranho). Na minha opinião, há uma nítida quebra de interesse, por um lado porque a continuidade lógica como o até então visto não é clara (assim como a não continuidade, que surge de repente), mas principalmente porque a força do teatro de Barrilaro Ruas reside precisamente na loucura solta da sua enorme energia interior, da sua paixão em estar em palco, na entrega à mais arriscada violência física. Com Barrilaro Ruas, estamos nos antípodas do tipo de risco e violência corporal que encontramos, por exemplo, em Vandekeybus: neste, temos a precisão oleada da máquina corporal desafiando as leis que a constrangem; em Barrilaro Ruas, temos o desvario da vida corporal, a carne, os músculos e o sangue em guerra aberta com as leis naturais que tolhem o movimento e a plenitude psicológica. Estamos perante a fragilidade e ao mesmo tempo a resistência do corpo enquanto vontade. O formalismo quebrou esta força estética.
Finalmente, penso que a acumulação de funções criativas em Barrilaro Ruas, que é responsável pelo cenário, coreografia, encenação, textos, figurinos e interpretação, terá tido, pelo menos no que diz respeito ao cenário, um senão: se o cenário é precisamente aquilo que deveria ser (o cenário é o espectáculo), já a escolha de materiais parece-me inadequada, dando um certo ar tosco a uma ideia que merece uma efectivação bem mais conseguida.
Antes que me esqueça: o final da peça, com o desvendar do artifício teatral e o caminhar calmo dos actores sobre o cenário, não apenas é belo, como de um optimismo retemperador. Mensagem final: se esta é uma primeira obra, então há que exigir mais Duarte Barrilaro Ruas para o público. Já!


2. MacBeth, de Johann Kresnik

Uma das lendas do jornalismo radiofónico brasileiro conta que um dia, um radialista, ao fazer o relato para a Rádio Estadual de Minas Gerais de um jogo de futebol entre o América e o Cruzeiro, desesperado com a qualidade do futebol praticado, levantou-se a meio do jogo e anunciou aos ouvintes que a paciência tinha limites, que a dele já se esgotara há muito, que por isso não iria mais relatar o jogo, e saiu porta fora. Ao ver o MacBeth de Kresnik senti profunda solidariedade com o homem. E respeito pela sua atitude corajosa e íntegra perante o que considerava um ultraje aos valores do seu desporto.
Com o MacBeth de Kresnik, não saí a meio, mas senti a mesma revolta ao ver tanto cabotinismo, pretensiosismo, falta de profissionalismo e de respeito por uma arte maior que é a dança, concentrados numa mesma peça. Está lá tudo o que enche o olho: o rio de sangue na boca de cena, as vísceras despejadas por um senhor misto de Padre Brown e Darth Vader, o cenário imponente, os lápis monstruosos pendurados como garras ou dentes (têm imenso a ver, é giríssimo!); está lá tudo o que enche o ouvido: as amplificações de palco, a amplificação da enorme porta, a música ao vivo para pianoforte que é para dizer que é uma obra a sério. Esqueceram-se foi de algo para encher a cabeça. A linguagem coreográfica limita-se a uma confrangedora variação sobre o tema geral do “rodopio”: voltas, voltinhas, piruetas para todos os gostos. As bailarinas (principalmente as “três vampiretes sádicas” híbridas de hospedeiras do ar da Transilvânia e guardas de campos nazis de prazer versão soft core – nada na peça é hard; senão não vende) não sabem dar um passo. Quanto ao conteúdo, o que dizer daquela cena que até vem muito a propósito (e que é plasticamente fortíssima, confesso, mas de efeito gratuito) da sala com móveis de cinco metros de altura e cheia de meninos a brincar e inocentes e depois descobre-se que eles são loucos porque aparecem ao fundo três senhores vestidos de psiquiatra (têm óculos, percebem?) e fingem que são amigos deles para depois os amarrarem e torturarem e violarem os inocentes todos? Mensagem do artista: “Não há loucos, tão a ver, a culpa é do sistema, topam?” O sangue corre a jorros. E depois há a Lady MacBeth que faz um figuraço com duas luvas de braço inteiro mas que são duas cobras tipo Muppet Show e as cobras acabam por matar a Lady MacBeth, o que significa que é ela que se mata a si própria, percebem? O nível de manipulação simbólica é comparável ao daquele senhor que construiu a estátua do Sá Carneiro e diz que só lá está a cabeça porque o Sá Carneiro era uma grande cabeça.
Olhem e mais não digo porque também a minha paciência tem limites e acabo de ver no programa uma entrevista dada pelo Johann Kresnik onde ele diz que a Pina Bausch não trouxe nada de novo ao teatro-dança! Como diz o nosso Primeiro, Safa! senhor coreógrafo, Safa!