BAILARINA DO MAR

BLITZ 31 Dec 1990Portuguese

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Durante praticamente uma semana o Acarte viu na sua Sala Polivalente a última obra de Paula Massano. Um espectáculo pela Companhia de Dança de Lisboa, “para todas as idades” com direito a sessões especiais para as escolas. Seguindo-se ao black out inicial sobre o palco a primeira imagem que temos do espectáculo é isso mesmo: um momento inicial fortemente único, fortemente estático, que a música original (original porque encomendada e não propriamente no sentido de inovadora) de António Pinho Vargas acentua. O contraste ou tensão desta primeira imagem estrutura-se em dois pólos: um diálogo entre o objecto cénico disforme e dimensional predominantemente em tons de azul e ocupando o fundo do palco; e a mancha amarela sobre o linóleo – que na sua bidimensionalidade reproduz em traços vigorosos o movimento sugerido pela escultura azulada.
O corpo deitado do bailarino, à esquerda do palco, e o figurino espelha esta dualidade proposta pelo cenário: camisa azulada; calças amarelas.
E porquê realçar o impacto destes momentos iniciais, imagem que se prolonga por vários minutos? Porque, este prólogo, ou introdução, que nos remete inevitavelmente para a estrutura do espectáculo do ballet clássico, com as introduções musicadas, revelar-se-á como o primeiro eixo fundamental da coreografia e simultaneamente como uma espécie de contraponto aos desequilíbrios da mesma: o cuidadoso envolvimento cenográfico, onde a coerência plástica presente entre figurinos e cenário (ambos da autoria de Ana lsabel Miranda Rodrigues) acabará infelizmente por se tornar o único fio condutor verdadeiramente coerente em toda a peça.
Creio que Paula Massano se viu conformada com um problema difícil de ser resolvido dentro da sua linguagem coreográfica e que claramente não resolveu. O problema seria o de transpor uma narrativa para a dança. Problema bicudo, se não quisermos retirar à dança contemporânea o que ela tem de específico, fundamental e libertador, a saber: a expressão poética dos corpos, a eliminação do jugo dos códigos verbais através da libertação do movimento a convenções mais ou menos narrativas. Por outras palavras, a busca de uma outra linguagem basicamente fundeada e proveniente daquilo se conhece por inconsciente. A lógica da expressividade corporal é uma lógica por natureza poética, não narrativa.
E eis então o principal problema de A Bailarina do Mar: uma constante hesitação entre explicitar e sugerir, entre narrar e actuar. Problema que não poderia ser resolvido pelo recurso explicitamente tomado pela coreógrafa e que nos é apresentado no programa, i.e., através de uma não caracterização psicológica das personagens. Por que este expediente retira duplamente consistência ao trabalho. Vejamos: O público vai ver uma coreografia que se apresenta como baseada, ou pelo menos inspirada, no conto de Sophia de Mello Breyner Andersen A Menina do Mar. Mas não vê no espectáculo referências a algo que se assemelhe nem de perto nem de longe com uma história. Tudo bem. Foi uma clara opção da coreógrafa. Mas não encontrará também qualquer outro fio condutor que justifique a existência de “personagens”. Pois, e por definição, uma personagem implica de alguma maneira uma biografia, i.e.: ou um passado, ou um presente ou um futuro. Uma personagem traz e faz sempre história. O que claramente não acontece na A Bailarina do Mar.
Como sinal disso mesmo, no vazio de sentido criado, as crianças espectadoras não hesitaram em procurar desesperadamente acoplar à acção não uma “história” – tarefa claramente impossível, as obras só são abertas na medida e na direcção em que deixam ser – mas curiosa e significativamente uma identidade às diversas personagens e elementos cénicos. Assim, rapidamente gerou-se o consenso de que a mancha amarela no chão do palco era sem dúvida um “barco” e que o coro mascarado era composto “peixes”. O que toda essa gente andava para ali a fazer não creio que nem adultos nem crianças conseguiram descortinar.
Então devemos voltar-nos para o aspecto formal. E aqui, o diálogo que Paula Massano parece quer propor entre movimentos baseados na técnica Cunningham e outros retirados do vocabulário clássico torna-se no mínimo obscuro nos seus propósitos. Em relação a Piña Colada ou a Estranhezas, as duas obras anteriores da coreógrafa, o movimento sai menos rico, menos belo. Ainda formalmente falando, o recurso ao black-out como separador entre os diversos quadros tornou-se um pouco fatigante ao fim de um certo número de repetições. Nesses momentos em que a escultura azulada tomava particular peso, um certo cansaço visual acabou também por surgir. Finalmente resta falar dos bailarinos. A Companhia de Dança de Lisboa apresentou-se em Lisboa fora do seu palco habitual, o Teatro S. Luiz. A proximidade que a Sala Polivalente cria entre bailarinos e público terá sido particularmente cruel para a maior parte dos bailarinos cuja deficiente técnica surgia de forma gritante. Excepção feita de Maria João Pires, Paulo Jesus, excelentes, e Joana Novaes, correcta. Alguém deveria também ter-se lembrado de avisar aos bailarmos que aquele palco não requer tão carregada maquilhagem. Um espectáculo desequilibrado onde alguns poucos bons momentos não impediram nunca que desencantasse onde deveria encantar e maçasse quem deveria estimular.