CONFRONTOS ACARTE

BLITZ 18 Sep 1990Portuguese

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O primeiro confronto é o do crítico a tentar cumprir a sua missão. O Acarte tem uma lista dos jornais que são bem-vindos a fazer críticas. De fora fica o BLITZ, bem como toda a imprensa regional e internacional. Lisboa será o mundo?

1. Segundo confronto: Karine Saporta

Confesso que já ia escaldado para assistir a La Poudre des Anges (traduzirei por O Pó dos Anjos porque a outra opção – A Poeira dos Anjos – é mais bonita e não merece a obra a que daria o título), a última coreografia de Karine Saporta frente ao Centre Choreographique National de Caen. Isto porque tivera a infelicidade de assistir, há alguns anos, a um terrível duo em que Saporta se entretinha em amarrar um transexual com ar de geisha a uma mesa e partir um belo serviço de loiça durante hora e tal. Mas é da minha natureza acreditar que os sistemas vivos aprendem com o erro e o próprio deslizar entrópico do tempo e mantinha, apesar de tudo, uma esperança para a obra que tinha, afinal, a honra de abrir estes sempre benquistos Encontros Acarte 1990.
O que de melhor aconteceu naquela hora e meia de coreografia foram os primeiros cinco minutos onde um anão de belíssima voz e enorme sentido de “timing” e de presença em palco nos narra, ao mesmo tempo que executa abstrusos movimentos com duas varetas (gosto de coisas que não fazem muito sentido), as aventuras e desventuras de Elizabeth Maulier, vulgo Mona Lisa, aventuras e desventuras essas que teremos de aguentar outra vez na versão coreográfica. Trata-se, de facto, de um momento visualmente bem conseguido, pois as luzes estão magistralmente bem feitas, o cenário é de bom gosto, os figurinos bonitos, tudo caro, perfeito, irritantemente limpo e endinheirado.
Curiosamente, é precisamente nesta profusão de meios que surge a primeira causa da distanciação comunicativa com o público. A perfeição técnica da parafernália cénica remete-nos para a imagem a-temporal, homogeneizada e hi-tech do black trinitron e retira toda a magia que o palco nos pode oferecer como local onde se vive e se actualiza um espectáculo. Depois vem a catrefa de tudo o que de horrorosamente foleiro a civilização francesa tão bem sabe oferecer à Humanidade. Primeiro, na trama narrativa: é óbvio que a tal da Elizabeth tem de ser uma corista mais ou menos prostituída num “cabaret” de luxo, que acabará a vida velha, gorda, inválida e bêbeda numa barraca de madeira. Tudo na melhor tradição da Condessa de Ségur e Claude Lelouche. Depois, na explanação dessa narrativa: em termos coreográficos a pretensa recuperação de movimentos do “music-hall”, circo e “cabaret” é ridícula. Karine Saporta é uma nódoa em termos de exploração de movimentos e os seus bailarinos são totalmente incapazes de dar um passo em palco.
A utilização da música na construção das diferentes nuances dramáticas revela-se também perfeitamente primária. Se, por um lado, a estrutura melodramática seria, na minha opinião, de facto a mais pertinente com a lógica linear e romântica da narrativa, já pensar-se, como faz Saporta, que para se transmitir ao público um estado de profunda emoção trágica basta aumentar o volume da música até à distorção e já está, é de ensandecer o mais pacato espectador. Pior: como Saporta parece ter-se apercebido do facto (isto é, da total indigência da música original de Guy Lascales e Christian Belhomme), lá descobre uma saída brilhante: para acentuar a noção de vertigem acelera-se o palco giratório de modo a dar o que chamarei de “efeito carrocel” (un effect carroussel). Feérico, não? Em termos de simbolismo, as três mulheres (todas vestidas a Sheeba, a Rainha das Selvas) são: uma loira, outra ruiva e outra negra, representando assim “A” Mulher, estão a ver? Mas as perguntas amontoam-se: todas as mulheres são Lisas e todas as Lisas são Mulheres? Serão todas as Mulheres lisas? E quem será o senhor de sobretudo cinzento que fica sentado a um canto durante toda a peça? Estará de castigo? Todas as coristas sofrem de tripla personalidade? A mensagem é profunda e mesmo hermética, mas se fosse mulher não ficaria muito contente.
O espectáculo termina cabotinamente com uma menina a cantar Alabama Song de Kurt Weill. Todo o público concordou com a necessidade de ir a correr afogar-se em whisky.


2. O primeiro reconforto: Rosamund Gilmore e o Laokoon Dance Group

De Rosamund Gilmore só pude ver Einmarsch apresentado na Sala Polivalente do Centro de Arte Moderna. Gilmore apresenta-se assumidamente como uma herdeira da grande (e à medida que os Encontros Acarte se aproximam do seu fim, cada vez maior, enorme e saudosa) Pina Bausch. Não sou daqueles que acham que a arte se deve reger por uma busca obsessiva do novo e do original. Não é esse o seu único papel nem será essa sequer a sua essência e a sua origem. Também não tenho nada contra a adopção de modelos, desde que sejam bons modelos (como é o caso). Assim sendo, estaria dentro das premissas necessárias para não ter problemas em aceitar este espectáculo (nunca se deve recusar nada logo de início). Confesso que saí mesmo com aquela sensação prazeirosa de se ter visto um bom trabalho. Mas o facto é que, passado já algum tempo desde a sua apresentação, sinto claramente que muito do sucesso que teve junto ao público e a mim mesmo se deveu ao facto de a estreia se ter seguido ao terror francês de Saporta.
Gilmore reúne numa sala cinco personagens, dois homens e três mulheres, que num ambiente marcadamente anos vinte, revivem a ascensão do nazismo. Reviver é a palavra exacta, pois é essa a proposta que nos é feita no início da peça: ao som de um metrónomo, os bailarinos/pessoas falam-nos do que se propõem fazer durante o tempo de representação do espectáculo, oferecem-nos simpaticamente champanhe (numa citação clara e bem vinda da mestra Pina Bausch) e começam a função. Se os bailarinos/actores não são nada de espectacular, é bom vê-los entregarem-se honestamente à peça que sobrevive de bons momentos humorísticos, principalmente na bebedeira de Carol e nas dancinhas de fox-trot, twist e outros quejandos dos anos loucos, onde as capacidades histriónicas dos dois homens (Bernd Bender e Ian Owen, principalmente o último que dança excelentemente) são determinantes para agarrar o público. Aqui começa e termina a excelência da peça. De resto, na construção e transição dos diferentes quadros falta consistência dramática, bem como falta maturidade na composição do movimento que sai das referências das danças de salão. A transição do ambiente ligeiro e luminoso da era pré-nazi para o ambiente pesado e obscuro do Anschluss falha redondamente. É necessária bem mais genialidade ou então ainda mais trabalho para se conseguir transformar um banquete festivo num pesadelo (Buñuel há só um) e a ligação que inevitavelmente fazemos aos Malditos de Visconti torna mais precária toda a pretendida densidade dramática da cena. Fica no entanto a satisfação de se ver um trabalho honesto, sem pretensões e muito embora não ser arrebatador, por vezes é bastante bem conseguido.


3. Finalmente Giorgio Barbiero Corsetti: Durante a construção da muralha chinesa

Ainda o público procura o melhor lugar no Anfiteatro ao Ar Livre da Fundação e já se pressente que algo de muito especial está prestes a acontecer. Dispostos pelo palco fora até às margens do lago, quatro enormes tubos brancos em diferentes inclinações marcam o espaço com uma força digna de Stonehenge (certos padrões volumétricos parecem ser sempre significativos para o Homo Sapiens; não há nada a fazer: faz parte do etograma da espécie). À esquerda uma escada de incêndio, como as que existem nas traseiras dos prédios nova-iorquinos, desce dos céus, do nada. No topo, uma porta fechada a esse nada dá o tom onírico. Tábuas de diferentes tamanhos espalhadas pelo chão aguçam a curiosidade e fazem fervilhar a imaginação expectante. À direita uma enorme caixa branca completa o cenário. The cerimony is about to begin...
E começa. Dos altos dos tubos surgem pessoas, os cinzentos (e cinzento é a síntese das duas não-cores exclusivas do cenário: branco e preto) burocratas de Kafka a chatearem do alto da sua ridícula posição os igualmente cinzentos cidadãos comuns que apesar de tudo mantêm o sistema a rolar. E o palco enche-se de gente, sempre a branco e preto e essa gente fala e grita e lança-se energicamente umas contra as outras e partem-se todas e cercam-se mutuamente com as tábuas espalhadas no chão. O absurdo instala-se de vez. Depois o palco esvazia-se e surgem contra a face da grande caixa uma pessoa e sua sombra. Mas a sombra é branca e o efeito é belíssimo. É bom de ver. É bom de ouvir a excelente, vibrante, oportuna e sempre forte música de Harry de Witt, por vezes gravada, por vezes interpretada ao vivo pelos próprios corpos dos bailarinos/actores. E depois é a desbunda da livre associação mas bem contida por uma inteligente descodificação do universo de Kafka revelada no modo como o “non-sonse” pontua a peça e cujo paradigma é a revelação do conteúdo da caixa branca: uma engrenagem absurda, misto de máquina devoradora de homens de Tempos Modernosde Charlie Chaplin e bicicleta, em cujas rodas/engrenagens giram sem parar dois bailarinos acorrentados. A economia de recursos visuais e a sua máxima valorização plástica sempre surpreendente ao longo de toda a peça mostra bem que não basta ter uma profusão de meios técnicos para se fazer um bom espectáculo: é preciso inteligência, garra, genialidade e força. Estamos nos antípodas da insuportável Saporta. E muito embora Corsetti, na minha opinião, não soubesse de todo resolver a peça, o que é de amargar, no termo da primeira semana de Encontros Acarte foi com ele que se viu e se sentiu que ainda há esperança, para o teatro/dança europeu.