NAS TERRAS DO IMAGINÁRIO

BLITZ 28 Aug 1990Portuguese

item doc

No dia 15 de Agosto no auditório do BESCL decorreu a antestreia de Bimarginário, coreografia e interpretação de Francisco Camacho e Mónica Lapa: a louca desbunda da livre associação ou a arte de bem atingir o equilíbrio em todo o palco. Começa com um banco daqueles corridos que só fazem lembrar os refeitórios horríveis da infantil com as malgas de sopa em metal e os copos de plástico anos 70. Só que o banco é do século XXI. Sentados, frente a frente, pernas escachadas, um careca com ar de Boris Karloff enfiado num bibe do Nero e uma Nina Hagen depois de levar um choque de 100.000 volts linda num vestido branco. A luz é um quadrado de âmbar, a música é (nesta parte) tradicional portuguesa mas tratada, samplerizada, trabalhada e o resultado é uma total disruptura (desculpem o neologismo) algures no neocórtex do espectador; o incómodo surge porque a ambiguidade é total. Sente-se que tudo pode ser possível. Começa o jogo (porque de jogos no fundo se trata, mas numa meta-meta-perspectiva onde tudo é permitido e onde se dilui o que até então julgávamos ser a ordem natural das coisas): ele e ela olham-se e tocam-se numa mímica absurda cujas regras só eles conhecem. Pensa-se: “será uma daquelas coreografias tipo ‘vê-os-nossos-corpos-macho-e-fêmea-oh!-feérica-loucura-vamos-dançar-um-bocadinho?’ que assolam o imaginário banal de quem só vê estereótipos numa relação Homem-Mulher. Mas logo a Nina Hagen encarregar-se de mandar um berro estranhíssimo e o Boris Karloff desmancha-se a rir, dobra-se sobre si mesmo, e esconde o rosto em convulsão de sistema parassimpático e as dúvidas maldosas chegam ao fim, pois surge outra vez o mal estar no público que não percebe se o bailarino ri ou chora e porque diabos a música é tão estranha e porque é que ela grita e grita e continua prazeirosamente a jogar.
Tudo isto não demora mais do que uns escassos minutos e já o público está agarrado. O que é fabuloso em Bimarginário é o jogo inteligente de ambientes e imagens que remetem o espectador para múltiplas referências: brincadeiras, filmes, jogos. Estas referências criam uma tensão no discurso coreográfico, tensão que Arthur Koestler chamou para o humor de “bissociativa” mas que em Bimarginário é “plurissociativa” (hoje estou numa de inventar palavras) e que prende o espectador à acção que lhe surge como um quebra-cabeças.
A infância (com tudo o que de horroroso, perverso, magnífico e criativo comporta a palavra e este nosso distante outro estado de ser) parece surgir como o nó-base da criação. Ou melhor, a “infantilidade”, que se manifesta na sua essência denegada e que Freud foi pescar: um erotismo sádico e uma omnipotência narcísica. Assim, deste nó central ramifica-se um equilíbrio tenso entre a histeria, o erotismo, o disparate e a inocência, que ocorre todos os 45 minutos de coreografia, mas que é bem exemplificado quando do jogo da apanhada onde a palavra “coito” dita por cada um dos bailarinos assume todos os seus inesperados sentidos.
O surrealismo e o kitsch estão também lá, o primeiro quando, novamente regressados ao banco, Francisco Camacho gira lentamente sobre um joelho enquanto Mónica Lapa olha entediada para o público. O segundo, nas luzes (rosa, laranja, azul, verde alface) e na música (excelente) de Bruno d’Almeida.
Aliás a música constrói um ambiente que muitas vezes nos remete ao cinema (de Fellini, mas também das séries b americanas de terror) ambiente pertinente porque Mónica Lapa é uma sapateadora e para o público sapateado é Ginger e Fred, Hollywood, kitsch até dizer chega. E tudo isto está também em Bimarginário no sapateado de Mónica mas também no movimento de Francisco Camacho, na sequência em que se lança pelo palco fora desenhando um largo círculo com o seu corpo esticado para trás, braço no ar e cara de Nosferatu.
Mas o melhor é o final onde se desmarcara finalmente o artifício do palco e o público acompanha com uma tensão digna de uma final da Taça dos Campeões entre o Benfica e o Milão, com o Benfica a jogar bem (juro que não é exagero: pelo menos foi assim no dia em que assisti), a uma fantástica partida entre Mónica e Francisco do Jogo dos Palhacinhos. A adrenalina corre aos litros e mais uma vez o público confunde-se mas não larga os olhos do palco.
Alguns desequilíbrios que pontuaram esta apresentação, como os dois momentos da ligeira dessincronização com a música e o quanto e mim ligeiramente prolongado final (quando se joga com factores imponderáveis como é o caso do Jogo dos Palhacinhos, há que ter mais presença de espírito para saber lidar com os eventuais imprevistos) não chegaram a incomodar.
Mónica Lapa e Francisco Camacho construíram assim um espectáculo inteligente, divertido e bonito (porque o Belo é sempre bem vindo), dançaram-no de forma superior (Francisco Camacho parece ter um controlo corporal e histriónico fabuloso; Mónica Lapa ultrapassou-se na sua interpretação) conseguindo muito bem afastar qualquer problema que poderia eventualmente surgir no confronto entre um bailarino e uma sapateadora (talvez fazendo um pouco de batota e evitando o confronto). Souberam igualmente gerir muito bem a indigência em que vive a dança em Portugal e com poucos recursos materiais apostaram nos recursos humanos: na mestria e bom gosto de Carlota Lagido, cujos figurinos se revelaram decisivos para a criação do estranho ambiente da obra; na sóbria eficácia formal de Rui Pedro Pinto no desenho e execução do banco; na música do Bruno d’Almeida. Aprenderam também uma nova profissão ao desenharem com bom gosto as luzes.
Vamos lá ver se alguém pega neste espectáculo e não o deixa morrer porque nós (o público) não merecemos tal sorte.